
Ela acordou graças à chuva, mas antes que desse conta que a janela deveria estar fechada percebeu a figura soturna que a espreitava à beira da cama.
O natural seria que se assustasse com aquele estranho enrolado em uma capa vermelha, de olhos inexpressivos e pele muito branca, mas foi com surpreendente serenidade que perguntou:
- Quem é você? O que faz aqui?
- Vim atender ao teu chamado. Foste tu que me invocaste.
- Como assim? Não chamei ninguém, nem sei quem você é!
- A cada momento de tristeza suplicavas por esquecer. Pois toda prece é ouvida, toda graça se alcança.
- Do que você... Como você sabe?
O homem não respondeu. Olhou pela janela e fitou a chuva que caia. Depois de algum silêncio, ela fez outra pergunta:
- Eu vou morrer?
Pela primeira vez ele a encarou. Disse calmamente que não, quer ela não morreria naquela noite. “Não vim levar a tua alma, mulher, isso é para outro”.
- Você é... um anjo?
- A figura do vampiro me é mais familiar – respondeu ele, com um discreto sorriso no canto da boca – Mas não é de sangue que me alimento.
A mulher sentou na cama e puxou a coberta para cobrir o corpo. A chuva estava mais intensa, mas o frio parecia vir de dentro do próprio quarto.
- O que você vai fazer?
- Vou levar comigo as tuas memórias. Mas não todas. Só me interessa o que te oprime. Deixarei no lugar apenas um brilho que será eterno.
- Mas se eu esquecer não vou cometer os mesmos erros novamente? Como ficam minhas experiências?
- Achas que tuas lembranças te livrarão de desacertos futuros? Que não voltarás a sofrer pois já passaste pela dor? A experiência é um valor inútil para determinados assuntos.
- Eu não sei o que pensar...
- Receba isso como uma benção, pois até mesmo teus equívocos tornar-se-ão momentos de mero aproveitamento.
A mulher abaixou a cabeça e manteve-se quieta, enquanto o homem se aproximou lentamente. Quando se reergueu escorriam lágrimas por seu rosto, então ela falou com os dentes cerrados “Faça!”.
O homem de capa pôs uma mão sobre cada ombro da mulher e aproximou-se lentamente do rosto, enquanto sua boca abria cada vez mais, até ficar grande o suficiente para que a cabeça dela coubesse toda e fosse engolida em um único movimento.
Foi com um grito que ela abriu os olhos e se viu novamente deitada. Já era de manhã, e quando tentou lembrar-se do estranho sonho que teve foi distraída pela poça d’água à beira da cama.
Naquele dia o sol brilhou com mais força, mas apesar de uma inexplicável alegria por estar viva, ela não sentia amor nenhum.
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Muito bom! Me fez lembrar – na essência – uns rabiscos já de alguns anos:
http://www.legal.adv.br/20110626/o-poder-da-memoria/
Muito bom, Adauto!
Entre outras coisas, essa história foi inspirada nesta música aqui: http://youtu.be/sxwzjLkb8e0